Bullying é uma prática desprezível.


Não importa o contexto. Ofender, perseguir e provocar alguém apenas no intuito de conseguir afetar aquela pessoa de forma negativa é nada mais do que um ato literalmente criminoso, em todos os aspectos. É um aspecto recorrente na juventude quando ainda não se tem maturidade, e muitos atos de bullying ocorrem sob a desculpa da brincadeira. Mas o resultado final é o mesmo: pessoas feridas emocionalmente.


O que não se esperava era que esse fenômeno fosse contaminar grupos de nerds e fãs das mais diversas obras.


Quando você é um pré-adolescente tímido e retraído, você geralmente recorre a mundos de fantasia como forma de escapar da crueldade vista na realidade. Curtir histórias em quadrinhos, filmes de fantasia e outras formas de entretenimento servem como refúgio desse bullying diário.


Contudo, o que se tem visto é que o bullying contaminou de vez essa geração perseguida, transformando-os em bullies dentro de um novo contexto: bases de fãs tóxicas.


Nessa semana, a atriz Kelly Marie Tran, que interpretou Rose Tico em Star Wars: Os Últimos Jedi, apagou os posts de seu Instagram após receber milhares de mensagens abusivas. Mensagens essas vindas de supostos fãs que se sentem de alguma forma ofendidos pela existência do filme.


Poderíamos discutir os prós e contras dos Últimos Jedi durante semanas. O filme realmente dividiu os fãs tomando decisões narrativas ousadas e controversas. Mas não é essa a questão sendo abordada aqui hoje.


A verdade é que esses fãs usaram a atriz como bode expiatório para justificar suas experiências frustradas com o filme. Narrativamente, a personagem de Rose funciona como uma antagonista que questiona as decisões de Finn. Muitos viram isso como uma tentativa de politizar os personagens desse mundo de fantasia criado por George Lucas. A idéia de que uma mulher com opiniões fortes teria o direito de contrariar um protagonista masculino levou fãs a acusarem até mesmo a produtora Kathleen Kennedy de promover um movimento de justiça social dentro da narrativa da saga.


Em primeiro lugar: Star Wars sempre foi político. O próprio contexto da batalha entre império e rebelião é inspirado diretamente em eventos vistos em nossa história.


Segundo: o fato é que estamos num momento atual no qual muitos estão cansados de como estão as coisas e desejam promover mudanças na sociedade. Mudanças muito bem vindas. É graças a esse mundo de redes sociais, onde todos estão conectados a qualquer momento, que é possível surgir movimentos como a escala anti-assédio que vem assolando Hollywood desde a revelação dos escândalos com Harvey Weinstein. Muitos estão cansados e insatisfeitos com as relações de poder entre os sexos e desejam fazer algo a respeito.


Se um filme deturpasse sua narrativa para incluir questões dessas de forma artificial, até entenderia o motivo para críticas. Mas sabemos que não é o caso com esse filme. A presença ou ausência de Rose não muda em nada o rumo da história, que lida muito mais com Rey e Kylo Ren.


Quem acusa Star Wars de dar espaço para "feminazis" é provavelmente algum macho inseguro que tem sérios problemas com o sexo oposto, incapaz de lidar com qualquer levante progressista.


E voltando a questão central, filmes como Star Wars cultivaram gerações de fãs nos últimos 40 anos. Durante 20 desses anos, foi uma base bastante unificada e harmoniosa.


Isso mudou em 1999, quando o Episódio I: A Ameaça Fantasma, foi lançado nos cinemas. A partir dali, surgiu uma divisão entre os fãs. Os que defendiam as decisões de Lucas, e aqueles que resolveram partir para ofensas pessoais e ataques diretos ao lendário cineasta. Quem se lembra das acusações de que Lucas teria sido racista ao criar o personagem estereotipado de Jar Jar Binks? Jake Lloyd, que interpretou Anakin, sofreu danos psicológicos com todo o abuso que enfrentou na adolescência. Foram seis anos de críticas e ataques pessoais até o fim da saga em 2005. Não é de se surpreender que Lucas tenha resolvido vender sua companhia para a Disney em 2012. Não havia porque ele continuar a aturar o abuso de fãs imaturos e ingratos. E olha que na época do Episódio I, não existia Twitter ou Facebook.


Não pense que essa toxicidade se restringe a Star Wars. É só passar um pouco de tempo visitando grupos de fãs de Batman, Superman, Jornada nas Estrelas, que você vê que este é um problema muito mais alastrado.


Só os fãs de Batman podem ter umas 10 vertentes distintas na qual se batalham, sejam eles os fãs dos filmes de Tim Burton, os dos filmes de Christopher Nolan, os dos quadrinhos de Frank Miller, os originais que cresceram lendo as primeiras edições escritas por Bob Kane. É uma briga sem solução ou fim plausível. Argumentar que seu gosto pessoal é mais relevante do que o do próximo não tem como gerir um desfecho que agrade a alguém.


Era simples na época em que tudo se resumia a debates amigáveis do tipo Marvel vs. DC ou Star Wars vs. Jornada. Época na qual muitos tinham opiniões diferentes, mas igualmente respeitadas. Agora se vê o oposto. Para que discutir racionalmente os vários aspectos de uma obra quando se poder simplesmente ser melodramático e atacar o autor ou dar declarações polêmicas, tudo em nome de uma "treta". Ou simplesmente pessoas que desejam acender o fósforo e ver o circo queimar.


E fãs de Star Wars que chegam nesse nível de comportamento não são nem um pouco diferentes dos bullies que os maltraram na época de colégio. Esse é o legado do abuso.


Nessa época de Web 2.0 em que vivemos, fica a impressão de que civilidade e paciência ficaram para escanteio. A impunidade e a falta de consideração dominam qualquer tentativa de discussão ou debate. Fenômeno também visto na política. Reflexo da decepção humana com a pós-modernidade? Resultado da falta de limites e civilidade da era Trump? A perda da crença no metafísico? O que leva uma pessoa a destilar ódio contra outra sem qualquer motivo pessoal desta forma?


Essa questão fica em aberto....



Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:37  

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