Relembrando Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida
(19 de ago. de 2016)
Em setembro de 1991, Jornada nas Estrelas alcançaria seu aniversário de 25 anos. Literalmente, um quarto de século de existência. 25 anos de relevância mantida, sucesso e devoção por parte dos fãs, e demanda por mais aventuras espaciais com seus personagens favoritos.
Quando Jornada havia completado 20 anos, a situação era bem diferente. 1986 foi marcado pelo lançamento do quarto filme, o anúncio da Nova Geração, e até mesmo o lançamento oficial do episódio-piloto original de 1964, com Jeffrey Hunter no papel do capitão, no formato VHS.
Em 1991, já não tinha tanta pressão pra apaziguar a sede dos fãs. A Nova Geração se encaminhava para sua quinta temporada, enquanto que Kirk e companhia já tinham passado por cinco filmes no cinema. Já Rick Berman e Michael Piller discutiam com a Paramount planos para uma nova série televisiva que se passaria na era de Picard. Contudo, a divisão cinematográfica da Paramount ainda via a necessidade de se produzir mais um filme no cinema.
Harve Bennett, que tinha mais um ano de contrato restante, já vinha circulando idéias para uma nova história. Após o quinto filme, ele submeteu à Paramount uma idéia entitulada Star Trek: Starfleet Academy.
Como o próprio nome deixa claro, a história se passaria na academia de treinamento da frota estelar, onde jovens alunos aprendem a se tornarem oficiais capacitados para missões como a da Enterprise. A trama contaria as origens de Kirk, Spock, McCoy, Scotty, Chekov, Uhura e Sulu quando eram adolescentes. Para Bennett, era uma jogada perfeita. Contratando jovens atores, a Paramount economizaria dinheiro nos cachês crescentes do elenco veterano. Eles apareceriam em breves cenas no início e fim do filme, deixando o peso da história nas mãos do novo elenco. Isso permitiria examinar os personagens de formas inusitadas, vendo como Kirk teve de se esforçar para provar que era capaz, como Spock contrariou o pai ao entrar para a frota, ou como McCoy passou a juventude cuidando do pai enfermo. Bennett e o roteirista David Loughery começaram a elaborar uma trama até que a Paramount ligou com más notícias. O diretor do estúdio insistia em uma história mais convencional com o elenco original, até por se tratar do aniversário de 25 anos.
Bennett não aceitou a decisão, e ficaram num impasse. Isso pôs um fim ao envolvimento dele com Jornada. Um trabalho que durou uma década. Bennett, magoado, arquivou a idéia*, recorreu à bebida e levou um bom tempo para se recuperar e tomar outros projetos.
*Parte da idéia de mostrar a vida deles como jovens cadetes foi reutilizada por J.J. Abrams e sua equipe no reboot de Star Trek, lançado em 2009.
Enquanto isso, a Paramount tinha de lançar o filme antes de dezembro de 1991, sem roteirista ou diretor contratado. A solução para eles foi colocar Leonard Nimoy na posição de produtor-executivo, responsável por desenvolver a história. Tendo provado seu valor criativo na direção de dois filmes, foi uma escolha natural. No quesito produção, Nimoy teve a ajuda do produtor Ralph Winter, que já havia trabalhado como produtor associado nos filmes anteriores. De cara, com prazo apertado, Nimoy recorreu à Nicholas Meyer. Meyer entrou no projeto como roteirista e diretor, supervisionado por Nimoy. Ele também trouxe à bordo o produtor Steven-Charles Jaffe.
Como Meyer estava ocupado filmando Companhia de Assassinos, com Gene Hackman, ele recorreu a seu amigo roteirista e dramaturgo Denny Martin Flinn para ajudar no roteiro de Jornada VI. Flinn acabara de ser diagnosticado com câncer*, e Meyer deu a oportunidade para ele focar em algo produtivo.
*Diagnosticado em 1990, Flinn sobreviveu mais 17 anos, morrendo em 2007. Ele inclusive contribuiu para várias entrevistas do material extra produzido para o DVD de Jornada VI, lançado mais de 10 anos após o filme.
Nimoy e Meyer decidiram que o filme seria uma analogia à queda recente do Muro de Berlim. Com a explosão de Praxis, uma lua de mineração Klingon, a atmosfera do planeta Kronos é contaminada, deixando o Império Klingon em estado de alerta, cientes de que esgotarão o oxigênio em 50 anos. Isso faz com que Spock, Sarek e o alto conselho da federação iniciem negociações de paz entre as duas potências, contrariando Kirk cujo ódio aos Klingons era insolúvel. Pôr um obstáculo entre Kirk e Spock em sua última aventura era a forma perfeita de elevar o drama nas vésperas do desfecho de suas aventuras.
E a medida que o filme entrou em produção, a União Soviética entrou em colapso, dando um fim definitivo à Guerra Fria. Não se podia imaginar a forma como os eventos do mundo real fizeram do filme tão relevante. Os Klingons sempre foram parcialmente uma analogia aos russos, levando em conta como a série original estreara no auge da Guerra Fria.
A trama, como devem lembrar, coloca a Enterprise numa missão de escoltar o chanceler Gorkon (David Warner) e sua trupe pelo espaço da Federação para uma conferência de paz, à contragosto de Kirk que segue suas ordens. No meio da viagem, um torpedo é disparado sem consentimento de Kirk, danificando os Klingons. Dois assassinos misteriosos teletransportam à bordo e assassinam o chanceler à sangue-frio. Cabe a Kirk e McCoy se renderem aos Klingons, a fim de preservar a paz intergalática, enquanto Spock tenta desvendar o mistério por trás do assassinato. Eles descobrem que há elementos tanto da Federação quanto entre os Klingons que trabalharam juntos e arranjaram toda esta situação para desmantelar qualquer chance de paz, pois eles são incapazes de existirem num mundo sem guerra ou conflito. Cabe então a Spock resgatar Kirk e McCoy e impedir outra tentativa de assassinato, esta contra o Presidente da Federação.
A cena da corte judicial* onde Kirk e McCoy são processados pelos Klingons, por sinal, é outra das clássicas. Plummer devora a cena como Chang sendo o promotor. Ele inclusive se apropria de uma fala, usada na vida real pelo diplomata Adlai Stevenson na crise dos Mísseis Cubanos, em 1962, pedindo para que o representante Soviético da ONU não espere a fala ser traduzida e que responda de imediato. O paralelismo deste filme com eventos históricos vai além de qualquer outra produção de Jornada.
*Michael Dorn, que já interpretava Worf na Nova Geração, fez uma participação no filme como um antecessor de seu personagem que foi o advogado de Kirk e McCoy no julgamento. Quem também participa do filme como um personagem fuzileiro da Frota Estelar responsável pela tentativa de assassinato do Presidente é René Auberjonois, que em breve interpretaria o Comissário Odo na série Deep Space Nine.
Meyer teria 12 meses para finalizar o filme. Tempo curto demais. E o orçamento não era o suficiente para realizar o filme. A Paramount disse que não subiria o orçamento. 25 milhões de dólares teriam de ser suficientes, pois o estúdio havia sofrido duras perdas financeiras no ano anterior. Meyer queria 30. A tentativa de conter gastos havia inclusive afetado a quarta temporada da Nova Geração. O estúdio estava sendo comprado por outra empresa. Era uma situação complicada, e nesse impasse, a Paramount deu um fim à produção do filme. Estava tudo acabado.
Contudo, Stanley Jaffe interviu e resgatou o filme. Sendo o pai do produtor Steven-Charles Jaffe, o veterano forneceu os 5 milhões extras que Meyer havia pedido. O filme estava de volta.
Contudo, mesmo com 30 milhões, tiveram de reaproveitar os sets já usados na Nova Geração para garantir que tudo permanecesse dentro do orçamento. A única parte em que se vê dinheiro investido é quando Kirk, McCoy e a alienígena Martia escapam pelos campos gelados de Rura Penthe, cenas que foram filmadas alternadamente com os atores num parque de Los Angeles e algumas tomadas externas feitas no próprio Alasca.
Após a ausência da Industrial Light & Magic no longa anterior, eles conseguiram os serviços deles para filmar a cena em que a lua Praxis explode, gerando uma imensa onda de choque espacial que atinge a USS Excelsior. A cena foi tão bem executada que rendeu um oscar de melhores efeitos visuais para o filme. Algumas das cenas de batalha envolvendo a Enterprise e a Ave de Rapina Klingon invisível não tiveram um resultado tão satisfatório. Com pouquíssimo tempo de pós-produção, tiveram de apressar alguns desses efeitos.
Meyer, famoso por fumar charutos bastante cheirosos, teve mais liberdade criativa neste filme e incluiu detalhes que jamais haviam sido vistos na Enterprise como uma cozinha, e até mesmo sinais de não fume, deixando a entender que a humanidade não teria largado o hábito no Século XXIII (contrariando a utopia defendida por Roddenberry). O filme também continha passagens de Shakespeare. Críticos e fãs divididos argumentam que Meyer exagerou nesse quesito, a ponto do General Chang (vivido por Christopher Plummer) virar uma máquina que recita Shakespeare ao invés de ter uma personalidade mais Klingon.
Leva-se em conta que a mitologia Klingon sendo desenvolvida na Nova Geração por roteiristas como Ronald D. Moore havia tomado um rumo bem diferente, mais semelhante ao conceito de samurais japoneses e questões de honra. Contudo, Meyer argumenta que o fascínio por Shakespeare é o que define Chang e faz dele um adversário único para Kirk.
Uma questão de lógica que separa este filme dos demais é a do sangue rosa Klingon. Já estava mais do que estabelecido na franquia que o sangue deles era tão vermelho quanto os dos humanos (vulcanos tem sangue verde). E sabemos o quanto esse detalhe é crucial nas investigações de Spock e Chekov ao descobrir o paradeiro dos assassinos. De acordo com Meyer, a coloração rosa foi resultado de duas questões: uma foi porque o efeito bolha do sangue seria este em gravidade-zero, mas o motivo principal foi para evitar que o filme ganhasse uma censura pesada. Levando em conta que estamos assistindo a uma sequência de assassinato em massa, com sangue derramado a cada disparo, faz sentido. É um momento impactante.
Meyer conseguiu também dar o nome final do filme: Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida. Este era o título que havia concebido para o segundo filme. Na época, a Paramount havia rejeitado porque achava que este nada tinha a ver com a trama do filme envolvendo Khan. A sugestão da Paramount havia sido A Vingança de Khan, que Meyer protestou e ainda afirmou que este seria o título usado por George Lucas no terceiro Star Wars*, antes de definirem o filme como A Ira de Khan.
*Ironicamente, A Vingança de Jedi foi o título do terceiro filme durante algum tempo, a sugestão do produtor Howard Kazanjian. Contudo, Lucas voltou atrás e usou O Retorno de Jedi no seu lugar, alegando que um Jedi jamais usaria vingança como instrumento de ação.
Outro problema enfrentado nas filmagens foram os atores. Eles sentiram que seus personagens estavam assumindo posturas racistas demais à serviço da trama com os Klingons. Nichelle Nichols inclusive recusou-se a dizer uma de suas falas por causa disso. A cena da janta entre a tripulação e os oficiais Klingons mostra um pouco das intenções de Meyer, com a hostilidade mal contida entre ambos os lados.
E o elenco de apoio conseguiu mais cenas de destaque para eles. Walter Koenig, James Doohan e também Nichols tiveram bons momentos. Há fãs que questionam a cena onde eles usam dicionários para traduzir Klingon e enganar um posto de escuta. Nunca que uma oficial de comunicações como Uhura não saberia ao menos falar alguma coisa em Klingon. Tanto que o reboot de J.J. Abrams fez com que a personagem fosse fluente no dialeto.
A trilha sonora foi composta pelo então novato Cliff Eidelman. Meyer queria James Horner. Contudo, Horner havia tornado-se caro demais para o orçamento limitado da produção. Ironicamente, Horner foi contratado para o segundo filme porque não conseguiram bancar Jerry Goldsmith. De qualquer forma, a trilha de Eidelman seguiu um caminho bem distinto, misturando os temas clássicos de Jornada com novos temas sombrios e impactantes.
Vale falar também de Rura Penthe, o planeta-prisão para onde Kirk e McCoy são enviados e conhecem a alienígena metamorfa Martia (vivida pela atriz Iman). A tentativa de fuga protagonizada por ela é na verdade uma forma de fazer com que os Klingons os matem, o que perdoaria sua sentença. A cena em que ela se transforma em Kirk para lutar contra ele é a oportunidade de William Shatner para expressar seu estilo teatral ao extremo, falando consigo mesmo.
No roteiro original, a idéia era trazer de volta a Tenente Saavik, vivida por Kirstie Alley no segundo filme, e por Robin Curtis nos dois seguintes. Saavik seria revelada como a traidora por trás dos torpedos e por esconder os assassinos de Gorkon. Nada mais natural, levando em conta como testemunhou de perto a morte de David, filho de Kirk, pelos Klingons. Até impactante se levar em conta que a selvageria dos atos sobrepôs a sua lógica vulcana.
Contudo (e com aprovação da Paramount), este detalhe do roteiro foi conclusivamente vetado por Gene Roddenberry.
Para Roddenberry, era inconcebível que uma personagem de tamanha integridade fosse capaz de trair os próprios companheiros em nome de uma iniciativa tão repreensível. Isso gerou uma reunião entre Roddenberry e Meyer marcada por advogados e um clima tenso no qual Meyer mostrou seu lado menos cordial, levantando a voz e abandonando o encontro com Roddenberry, que já se encontrava extremamente debilitado fisicamente, com muitos anos de abusos de substâncias ilícitas dentre outros vícios. E era fato que Roddenberry era veemente contra o estilo militar náutico que Meyer havia impresso na franquia.
A mudança fez com que Meyer e Flinn criassem uma nova personagem, a Tenente Valeris (vivida pela Kim Cattrall, a mesma de Sex and the City). Mesmo tentando criar uma história entre ela e Spock, mostrando que era aluna dele, ficou muito na cara que só podia ser ela que sabotara os esforços de paz ao esconder a origem dos torpedos e o paradeiro dos assassinos.
Mas por sinal a cena em que Spock usa o toque vulcano para extrair informações de Valeris consegue ser uma das mais perturbadoras já filmadas nesses 25 anos. Beirando um tipo de estupro mental.
George Takei não teve tanto espaço neste filme. Isto ocorreu porque seu personagem havia sido promovido à capitão da USS Excelsior* (sim, a mesma nave que Scotty havia sabotado no terceiro filme). Takei desejava esta promoção desde o segundo filme. Sabe-se que ele sempre teve uma certa desavença com Shatner (assim como os demais coadjuvantes), e sempre quis um reconhecimento por sua contribuição como Sulu. Esta foi sua oportunidade. Outra veterana da série original que também aparecera na Excelsior foi a atriz Grace Lee Whitney** como a oficial Rand, que havia feito algumas participações nos longas anteriores.
*Quem divide uma cena com Takei brevemente no filme é um jovem Christian Slater. Filho da diretora de elenco, Mary Jo Slater, ele conseguiu essa ponta no filme antes de se tornar famoso. Hoje é ele conhecido por seu papel na série Mr. Robot.
**Na série original, Whitney havia sido incluída no elenco como uma das principais, a oficial do capitão, e tinha uma tensão amorosa com ele. Contudo, os problemas de bebida e remédios da atriz a impediram de seguir adiante na série original e foi dispensada no meio da primeira temporada. Ela levou anos para se recuperar e se tornou porta-voz para viciados em vários eventos, incluindo convenções de Star Trek.
Já Nimoy teve disputas com a Paramount, que tentou incluir dois roteiristas, Lawrence Konner e Mark Rosenthal, que não contribuiram em nada na trama do filme, mas receberam crédito por tal. Nimoy tentou recorrer ao sindicato dos roteiristas, mas havia uma questão política por parte da Paramount que impediu isso e o crédito foi mantido.
Quando o filme foi completo, uma cópia foi exibida a Roddenberry. Ele deu sinal de aprovação. Em seguida se reuniu com seu advogado, Leonard Maizlish, e iniciou medidas judiciais para cortarem 20 minutos de cenas excessivamente militares.
Antes que o processo entrasse em trâmite no sistema judicial, Gene Roddenberry morreu de insuficiência cardíaca, aos 70 anos.
Ao mesmo tempo que todos celebravam os 25 anos de Jornada nas Estrelas, tanto fãs quanto produtores, roteiristas, atores, e todos aqueles responsáveis por criar este universo estavam em luto pela morte de Roddenberry. Por mais que tenha tido seus problemas, não há como negar o impacto que ele teve ao criar o conceito original. No fim, o filme foi decidado à ele.
Tendo criado a obra original, por questões autorais, todas as produçõs posteriores de Star Trek são devidamente atribuídas a Roddenberry.
O filme foi lançado em dezembro de 1991, e foi um sucesso entre os fãs. O final do filme deixa claro que este era definitivamente o fim. Kirk e sua tripulação seguem com sua nave em direção a sua última jornada para casa, para se aposentarem, cientes que as jornadas continuarão com novas tripulações.
Se levar em conta que o segundo filme, A Ira de Khan, lidava com Kirk tendo uma crise de meia-idade, o sexto filme mostra que a idade chegou para todos*. Kirk grisalho. Scotty e McCoy visivelmente velhos. Apenas Spock permanece mais ativo devido ao envelhecimento vulcano ser mais lento.
*Por falta de conhecimento, Flinn havia escrito um final alternativo no qual Kirk entrega à Picard as chaves da Enterprise, sem saber que A Nova Geração se passava 80 anos após os eventos do filme, com uma nova nave.
Jornada havia chegado ao fim de suas aventuras originais. Foram três temporadas com a série original, duas temporadas com a série animada e seis filmes no cinema. Essa era a reta final, mais do que merecida para Kirk e cia.
Mas ainda tinha muitas fronteiras a serem cruzadas por uma nova geração. E a Paramount, junto com Rick Berman, já preparava o futuro da franquia.
Fique duas cenas inesquecíveis: a cena em que Kirk assume responsabilidade pelas ações da tripulação no julgamento, e também a cena final do filme, logo abaixo:
Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 11:31
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