Enquanto Jornada nas Estrelas: A Nova Geração prosseguia na produção de sua quinta temporada, o produtor do seriado, Rick Berman, encontrava-se em discussões com o alto escalão da Paramount sobre a possibilidade de uma nova série televisiva.


O presidente do estúdio, Brandon Tartikoff, tinha um conceito em mente: Rifleman, que foi uma série do velho-oeste sobre um xerife e seu filho que cuidavam de uma cidade sem lei. Foi a partir dessa premissa que Berman e Michael Piller criaram a série Jornada nas Estrelas: Deep Space Nine*.


*A série também foi brevemente conhecida no Brasil como Jornada nas Estrelas: A Nova Missão.


DS9 fez o que nenhuma outra obra da franquia ousara fazer: tirou os personagens da nave e os colocou numa estação espacial: um local inerte. Acabaram-se as viagens pelos confins do espaço. Logo de cara, situar a ação numa estação mudaria completamente as possibilidades de histórias que poderiam ser contadas.


Outra decisão de Berman e Piller foi a de não pular novamente várias gerações. DS9 se passou no mesmo período da Nova Geração. Inclusive Patrick Stewart participa do episódio-piloto como Picard, passando a missão principal do novo comandante.


Um elemento central da nova série foi a presença permanente do povo Bajoriano, com presença constante de sua cultura, religião e constantes problemas sócio-políticos. Introduzidos na Nova Geração, os Bajorianos passaram 60 anos ocupados pelos Cardassianos, numa clara alegoria a diversas sociedades que foram igualmente ocupadas. A referência mais óbvia é a dos judeus tratados como subhumanos pela alemanha nazista, sendo forçados a trabalhar em campos de concentração. Esses campos existiram em Bajor, e foram o ponto de partida para várias histórias.


Logo se vê o nível de maturidade que DS9 coloca em sua narrativa. Mesmo na Nova Geração, seria impossível contar certas histórias até pelas expectativas que o estúdio tinha na série conquistar um público amplo. DS9 contava histórias que afugentariam parte desse público. Até por isso, e por se passar numa estação, a série nunca conseguiu ter o mesmo nível de audiência que A Nova Geração. Felizmente, isso deu aos produtores e roteiristas mais liberdade criativa.


Originalmente, DS9 teria como uma das personagens principais a Alferes Ro Laren (vivida por Michelle Forbes), uma personagem que havia sido introduzida na quinta temporada da Nova Geração. Uma Bajoriana que havia cometido um erro que custara a vida de oficiais da Frota Estelar. Contudo, Forbes não queria se prender a mais uma série.


Sem dúvida, um dos elementos mais fortes da série é seu elenco extremamente diverso. Avery Brooks interpreta o Capitão Sisko, um viúvo que perdeu a esposa nas mãos dos Borg, agora responsável por garantir que Bajor cumpra os requerimentos para tornar-se membro da Federação. Só que ao estabelecer contato com os alienígenas que residem dentro de uma misteriosa fenda espacial próxima a Bajor, ele torna-se um emissário dos profetas. Pelo fato da religião ser um dos poucos aspectos que unem os Bajorianos em tempos de crise, os alienígenas da fenda espacial são vistos por eles como os profetas, e Sisko como seu emissário. Um elemento interessante também no episódio-piloto foi a raiva que Sisko sentia por Picard, devido a sua situação com os Borg na batalha de Wolf 359, que tirou a vida de Jennifer Sisko.


Apesar de um certo teatralismo por parte de Brooks, Sisko mostra uma proximidade com um público bem maior que figuras arquétipas como Kirk ou Picard. Ele tem uma vida própria, família e amigos, além de paixões como baseball e cozinha.


Sisko também é responsável por criar seu filho, Jake (Cirroc Lofton). Um jovem adolescente que perdeu a mãe cedo e busca seu rumo na vida. Um aspecto que define seu personagem é o pavor de ficar sozinho. O excelente episódio The Visitor, na quarta temporada, mostra um possível futuro no qual ele disperdiça sua vida para conseguir trazer seu pai de volta após um acidente temporal que o fez desaparecer. O episódio prevê o destino final de seu pai na série, e mostra o quanto ele tem de crescer e aprender que sua vida não pode depender para sempre de seu apego àqueles que o trouxeram ao mundo.


Não só vimos Jake crescer ao longo desses anos, mas também vimos Nog (Aron Eisenberg), amigo de Jake e sobrinho de Quark, que se tornou o primeiro Ferengi na Frota Estelar. Evolução e crescimento perante nossos olhos de espectador.


A personagem, que era para ser Ro Laren, tornou-se a Major Kira Nerys. Vivida por Nana Visitor, Nerys veio de um passado brutal. Nasceu e cresceu em meio a ocupação Cardassiana. Seu pai e mãe morreram quando era criança. Juntou-se a um movimento terrorista para libertar Bajor aos 12 anos e matou muitos Cardassianos até atingir seu objetivo. Foi a primeira personagem a mostrar seu potencial no início da série. Sua dor e raiva geraram muitos momentos fortes logo de cara. Seu preconceito contra Cardassianos também foi motor para várias histórias, até porque era inconcebível para alguém como ela que houvessem aqueles dentro de Cardassia que buscassem soluções pacíficas e questionassem o comando central deles.


Logo na primeira temporada, temos o brilhante episódio Duet, no qual um Cardassiano que sente culpa pela ocupação, muda sua aparência para encarnar um general que havia comandado um campo de concentração e se entrega para Kira Nerys, a fim de enfrentar um julgamento que exponha a verdade sobre os crimes Cardassianos. Isso faz com que Nerys descubra que nem todos os Cardassianos são criminosos ou culpados.


Um objetivo dos roteiristas, logo no início da série, foi a de trazer de volta conflitos entre os protagonitas. Como nas regras do futuro idealizado pelo falecido Gene Roddenberry não permitia conflitos entre os humanos do Século XXIV, a solução foi criar conflito entre oficiais da Frota Estelar e personagens que não eram desse mundo como Kira, Odo e o barman Quark. Personagens que questionavam de cara os ideais da Federação e o mundo quase estéril e perfeito visto durante várias temporadas na Nova Geração.


E o personagem Quark, da raça Ferengi, foi sem dúvida um dos personagens mais populares da série. Com excelente interpretação de Armin Shimerman*, ele deu uma nova dimensão aos Ferengis. Até então, a raça alienígena introduzida na Nova Geração não havia passado de uma caricatura capitalista com enormes orelhas e péssimos episódios que sempre batiam nos mesmos clichês. Em DS9, os Ferengi foram retratados como uma sociedade com o devido respeito e desenvolvimento narrativo. Após a saída de Michael Piller, que foi criar Jornada nas Estrelas: Voyager, o roteirista Ira Steven Behr (também veterano da Nova Geração) assumiu a produção do seriado, e junto com sua equipe passou a dar ainda mais importância ao desenvolvimento social dos Ferengi e a forma como o conservador Quark reagia a essas mudanças.


*Shimerman já havia interpretado vários Ferengis na Nova Geração. O ator Max Grodénchik, que interpreta seu irmão Rom, também encaranara alguns.


Quark rendeu momentos engraçados, mas também mostrou ser um hábil porta-voz crítico a certos elementos da Federação. Um tema central de DS9 foi mostrar as falhas da humanidade e da Federação no Século XXIV, contrariando diretamente a utopia humanista estabelecida por Roddenberry.


Houve também dentre os personagens o Comissário Odo, vivido por René Auberjonois. Odo, uma forma de vida líquida capaz de assumir qualquer forma, tinha origens misteriosas mas dava uma enorme importância a ordem e justiça. Devido a essa função, Odo tornou-se uma figura presente na maioria dos episódios sempre um problema assolava a estação. Quando descobriu de onde veio, teve a decepção de encarar a verdade que seu povo não partilhava dos mesmos ideais que ele. Os Fundadores tinham um império no quadrante Gamma, e estavam montando uma força para atacar e dominar tanto a Federação quanto os Klingons. A justificativa deles era anos e anos de perseguição e preconceitos contra metamorfos. Vingança ao invés de justiça.


Dentre os demais personagens principais tinham o Chefe de Operações Miles O'Brien (Colm Meaney), ex-técnico de transporte da Enterprise que viera com a família para a estação, Doutor Julian Bashir (Alexander Siddig), um médico brilhante que revelou ser geneticamente modificado por seus pais, e a cientista Jadzia Dax (Terry Farrell), uma oficial talentosa cujo corpo continha um alienígena que já havia vivido oito vidas anteriores em outros corpos.


As primeiras temporadas focaram em introduzir os personagens, o mundo onde viviam e a dinâmica dos conflitos vigentes. No final da segunda temporada, o Império Dominion foi introduzido com a revelação de que a raça de Odo estava por trás deles.


Na terceira temporada, Ira Steven Behr e seu parceiro Robert Hewitt Wolfe se viram na necessidade de introduzir uma nave espacial para dar mais mobilidade aos personagens. DS9 dependia exclusivamente de três pequenas naves classe Runabout até então. Com a nova ameaça vinda além da fenda espacial, era necessário mais apoio. Foi introduzida a Defiant, uma nave com enorme poder de fogo, e até a capacidade de tornar-se invisível, tecnologia disponível graças a um novo tratado com os Romulanos. Ao contrário da Enterprise, esta era literalmente uma nave de guerra.


Já na quarta temporada, o estúdio queria que DS9 desse uma sacudida para atrair mais público. Foi aí que Berman sugeriu reintroduzir o personagem Worf (Michael Dorn) neste novo ambiente. Ao introduzir Worf, os roteiristas tiveram de criar mais um conflito para a Federação, desta vez com os Klingons, que usaram a paranóia dos metamorfos* para atacar o governo Cardassiano. Quando Worf assume a iniciativa de Sisko em impedir uma guerra, o chanceler Gowron destitui a posição de Worf no império, fazendo dele um exilado novamente. Foi o primeiro caso de um personagem de outra série ser incorporado desta forma.


*Essa paranóia sobre metamorfos se infiltrando nos altos escalões de governo também rendeu ótimas histórias na série.


O que vai se percebendo é como as histórias em DS9 nunca terminam dentro do mesmo episódio onde iniciou. A Nova Geração havia flertado com o arco da Guerra Civil Klingon brevemente, mas foi em DS9 que Jornada começou a abraçar uma narrativa mais serializada, com consequências sentidas à longo prazo. Isso se deve principalmente ao fato da estação permanecer no mesmo local. A Enterprise podia deixar os problemas para trás e partir em outra aventura. DS9 tem de lidar com problemas que não irão embora, sejam eles Bajorianos, Ferengi, Klingons, Cardassianos, Maquis ou uma possível invasão dos Dominion. A forma como a série ampliou e expandiu esse universo é impossível de quantificar. Toda a mitologia estabelecida nas série anteriores acabou ganhando novas camadas.


Claro que DS9 nem sempre foi 100% qualidade narrativa. Houve alguns episódios bem ruins. Um dos piores já concebidos foi Profit and Lace, na sexta temporada*. O episódio cuja intenção original era mostrar a evolução do movimento social feminino na sociedade Ferengi tornou-se uma aberração na qual Quark faz uma cirurgia de mudança de sexo para convencer um agente federal a restituir o líder comercial do planeta. É uma afronta a qualquer história de igualdade e abraça os piores clichês ao mostrar Quark vestido de mulher e tendo crises emocionais. É uma comédia mais fácil de fazer o público chorar.


*Ao todo, a sexta temporada teve problemas em incorporar a guerra em episódios que não lidavam com ela. Às vezes, parecia que não havia uma guerra acontecendo.


Um fator positivo no uso de tramas à longo prazo foi a possbilidade dos roteristas criarem romances entre os protagonistas, como Kira e Odo, ou Worf e Dax (esta também era cortejada por Quark e Bashir). Era raro ver romances consumados entre os personagens principais na Nova Geração, tampouco na série original.


Esta situação narrativa fez também com que a série gerasse uma quantidade assustadora de personagens secundários recorrentes. Dentre eles, tivemos Garak, Dukat, Damar, Ziyal, Michael Eddington, Ishka, Rom, Nog, Zek, Gowron, Martok, Leeta, Brunt, Weyoun, Keiko O'Brien, Almirante Ross, Vedek Bareil, Kai Winn, a Fundadora Feminina e muitos outros. Só dos citados acima, já temos quase vinte. Nenhuma outra série teve tantos personagens assim.


E os personagens principais também evoluiram de formas inusitadas. Tanto na série original quanto na Nova Geração, era pouquíssima a evolução dos personagens. Na série original era nula. Foi somente nos filmes que vimos novos lados de Kirk, Spock e McCoy. Na Nova Geração, ainda teve alguma tentativa de evoluir os personagens, mas muito tímida. Foi somente em DS9 que vimos essa evolução por completo. A forma como Bashir e O'Brien tornaram-se amigos. A forma como Sisko foi superando seu desconforto como figura religiosa Bajoriana e foi abraçando cada vez mais sua ligação com os Profetas. Ou a forma como Bashir deixou de ser um médico novato, mulherengo e arrogante e mostrou ser um dos oficiais mais competentes e dedicados a missão. DS9 foi um estudo de evolução de personagens que ainda tem de ser superado no universo de Jornada.


DS9 também criou o conceito da Seção 31, uma entidade secreta dentro da Federação que conduz operações ilegais que ninguém jamais revelaria a fim de perservar o paraíso que é a sociedade humana naquele século. Foi um conceito que dividiu fãs e foi reaproveitado em encarnações mais recentes de Jornada.


DS9 também abordava histórias de comédia com muito mais naturalidade que A Nova Geração. Quando Jornada nas Estrelas comemorou seu 30º aniversário em 1996, a equipe produziu um episódio no qual a tripulação voltava no tempo entrando literalmente num episódio da série original, Problemas aos Pingos, usando a mesma edição e tecnologia usada em Forrest Gump quando ele cumprimenta presidentes. Há uma cena no episódio na qual eles descobrem que há Klingons em volta deles, só que com a maquiagem usada na série original. Eles imediatamente questionam Worf quanto a esta gafe visual, e ele diz que Klingons não discutem esse assunto com humanos.


DS9 também fez outras homenagens a série original, inclusive inserindo seus personagens no famoso universo espelho paralelo estabelecido como um lugar onde todos os personagens que conhecemos são pessoas maléficas ou mal-intencionadas. Outro elemento trazido pra DS9 foram os três personagens Klingons da série original Kor, Koloth e Kang. Inclusive foram interpretados pelos mesmos atores, agraciando fãs com alguns excelentes episódios que unem esse legado da série original com o código de honra Klingon estabelecido na Nova Geração.


DS9 foi a primeira série de Jornada a mostrar um beijo entre dois personagens do mesmo sexo. No excelente episódio Rejoined, Dax e a cientista Lenara Khan (Susanna Thompson) tiveram de lidar com uma situação na qual eram proibidas de reatarem um relacionamento que tiveram em outra vida.


Nas últimas temporadas, os Dominion entraram no espaço da Federação e fizeram uma aliança com os Cardassianos, garantindo a Dukat que recuperariam os períodos gloriosos quando eram os donos de Bajor. Em desespero, a Federação reinstituiu uma aliança com os Klingons. Estava armada uma guerra que duraria as duas últimas temporadas do seriado e custaria trilhões de vidas. Era um novo passo para Star Trek. Um dos melhores episódios surgiu neste contexto, In the Pale Moonlight, no qual Sisko toma medidas extremas e moralmente questionáveis que nenhum oficial da Frota jamais tomaria a fim de convencer os Romulanos a auxiliarem eles na guerra.


Por sinal, a essa guerra envolvendo tantos lados adquiriu uma escala tão imensa que mudou completamente a forma como se produziam efeitos visuais até então. Duranta a Nova Geração seria impensável produzir um batalha envolvendo centenas de naves ao mesmo tempo. Com a melhora da tecnologia em computação gráfica na década de 1990, tornou-se finalmente possível montar uma sequência visual com essa ambição narrativa em DS9. Isso beneficiou posteriormente séries como Voyager e Enterprise, e também os filmes.


Existe também uma controvérsia até hoje de DS9 ser um clone do seriado Babylon 5. Ambas as séries estrearam em 1993. Ambas lidaram com uma estação espacial, e ambas lidaram com uma crescente mitologia conectada com tramas de longo prazo. Contudo, vejo isso como um caso de mera coincidência. Já aconteceu de filmes sobre o mesmo tema serem feitos na mesma época. E a visão que o roteirista J. Michael Straczynski tinha de B5 datava desde a década de 1980. O fato de DS9 ter sido criado com base em Rifleman mostra que há diferenças suficientes para por um fim a esse boato.


Na última temporada, Terry Farrell não retornou como Dax. Sua personagem foi morta na temporada anterior, e o alienígena simbionte foi transferido para um novo corpo, dando vida a Alferes Ezri Dax (Nicole de Boer). A nova Dax foi uma excelente presença na última temporada. Ter uma nova personagem para explorar, ainda uma numa situação psicológica tão incerta deu bastante combustível narrativo nessa reta final. Além de criar tensões com Worf e suas convicções religiosas sobre o destino dos mortos, a personagem deu a Bashir uma chance de relacionamento.


No fim das contas, DS9 durou sete temporadas, Um total de 176 episódios até seu final em maio de 1999. E quando acabou, foi uma conclusão definitiva para quase todos os personagens (menos Worf). A Nova Geração ainda tinha sobrevida com filmes no cinema. DS9 sempre havia sido tratada como um primo postiço dentro da própria franquia. Não haveria filmes no cinema para eles. Felizmente, a passagem do tempo foi boa para a série, que tem ganho cada vez mais o respeito dos fãs. De certa forma, DS9 evoluiu até melhor que A Nova Geração.


O episódio final representou o desfecho de mais de quinze tramas em andamento por toda a série, incluindo o fim definitivo da guerra, a volta de Odo para seu povo, o fim do exílio de Garak, e o fim da jornada de Sisko como o emissário dos profetas Bajorianos. A maioria das tramas teve um desfecho mais que satisfatório. Pode não ter sido uma série com o mesmo destaque que as demais teve pela mídia, mas DS9 sem dúvida foi a mais ambiciosa na época em que foi produzida e sem dúvida teve o aprecio de muitos fãs, ganhando mais alguns com o passar do tempo.


Fique com quatro inesquecíveis sequências da série logo abaixo:







Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:45  

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