Se há um aspecto narrativo que diferencia o cinema e a TV de hoje em dia comparado às produções de 30 ou 40 anos atrás é a presença cada vez maior do anti-herói.


E quem é o anti-herói? Já se foi a época em que o gosto público e a cultura pop eram definidos por heróis tradicionais. A figura sem qualquer falha moral ou defeito (fora talvez o hábito de fumo excessivo nos filmes de antigamente).


Inclusive, ainda dá para se dizer que a figura do herói tradicional persiste hoje. Mas é uma figura atualizada, mais ciente dos seus defeitos e falhas, mas que ainda assim luta pelos seus ideais e por um mundo (ou universo) melhor. Não é a toa que o cinema blockbuster hollywoodiano atual se tornou uma indústria direcionada pelos super-heróis da Marvel e a volta de Star Wars.


Quando pensamos em anti-herói, a tendência é olhar para a nova era de ouro da TV que começou há cerca de 20 anos. Protagonistas como Tony Soprano (A Família Soprano), Don Draper (Mad Men) e Walter White (Breaking Bad) são os primeiros exemplos que nos vem a cabeça. São personagens de moral e ética completamente divorciada do herói tradicional. O primeiro é um mafioso capaz de matar pessoas com as próprias mãos, o segundo é um homem que usurpou a identidade do companheiro morto na guerra, e o terceiro é um professor de química que resolve produzir metanfetamina para ganhar dinheiro e poder, destruindo inúmeras vidas, incluindo sua própria família.


Não há qualquer dúvida. São pessoas que jamais teríamos interesse em conhecer de perto na vida real. Mas aí entra um dilema: por que torcemos para esses personagens?


Não há uma resposta simples a essa pergunta. Mas dá para ter uma noção de como esse processo é criado. De início, temos de analisar os roteiros dessas obras. Digamos que a estrutura narrativa dessas histórias ainda seguem o modelo tradicional de 3 atos (ou 4 atos, na TV). Cada detalhe desses roteiros é construído e estruturado de forma minuciosa a gerar emoções por parte do espectador. E por fim, quando ele ou ela sequer percebe, já está investido na jornada do protagonista e torcendo abertamente. Isso ocorre porque o objetivo desses roteiros é explorar o emocional em detrimento da lógica.


Walter White é estabelecido no primeiro episódio como um professor mal pago acometido com um câncer incurável. Isso cria empatia por parte do público. É uma pessoa como qualquer outra, vivendo o mesmo cotidiano de sempre, e que luta a cada dia, sem qualquer dignidade ou auxílio exterior. Do ponto de vista dele, ele se sente sempre emasculado por todos, incluindo a própria família - que o ama. Assim, o roteiro já consegue fisgar o espectador e colocá-lo na posição de Walter White. Agora que fez isso, dá o primeiro twist e flerta com a possibilidade de cometer uma pequena transgressão que a princípio não fará mal a ninguém. Cozinhar a primeira dose da droga. E de pouco em pouco, Walter vai entrando num caminho sem volta, a trama vai se complicando e seus piores instintos vão dominando sua personalidade pacata anterior. Quando menos percebemos, já estamos vendo um monstro no lugar daquele professor.


Mas até que ponto o público é capaz de torcer por essa figura sem perceber que está literalmente legitimando as atrocidades e crimes do personagem?


Cada espectador reage da sua forma. Alguns percebem de cara. Outros sequer notam. E cada um reage de acordo com seu senso de moral e ética. Mas também acredito que a maioria compreenda que estamos lidando com obras de ficção. Óbvio que uma discussão sobre a moralidade de personagens fictícios não necessariamente diz algo sobre o caráter de cada espectador.


O que me preocupa as vezes, é quando alguém adota o caráter de certo personagem de forma muito literal, sem compreender a intenção do autor da obra. Afinal, vivemos em um país onde o nível de leitura é muito baixo dentre a população. A tendência é criar ídolos e figuras de exemplo nas mídias audiovisuais. Durante muito tempo a televisão teve papel hegemônico nessa formação de caráter do público, principalmente nas classes mais baixas.


Tomando como exemplo, os dois filmes Tropa de Elite, lançados em 2007 e 2010. Os filmes claramente mostram que um personagem como o Capitão Nascimento não é uma pessoa comum, e que sua cruzada contra o crime organizado e a corrupção do sistema tem consequências negativas tanto para sua saúde quanto sua vida pessoal. Mas nada disso impediu que diversos espectadores tomassem as dores do personagem como uma forma de legitimar seus respectivos discursos de ódio, validando ainda mais o extremismo que reina no país hoje.


Esse é o pior lado possível nessa relação do público com a figura do anti-herói. Aqueles que se deixam levar pelo discurso do personagem sem sequer perceber a intenção original do autor. Aqueles que deixam de perceber que alguém como Nascimento se trata de um anti-herói e passa a usá-lo como exemplo de herói.


Claro que na era atual do cinema e da TV, a tendência é humanizar esses personagens. Não há dúvida de que figuras como Tony Soprano e Walter White são dominados por medos, inseguranças, e mesmo com suas falhas ainda tem a capacidade de empatia e amor, ao menos por suas respectivas famílias. Não são sociopatas absolutos. Ainda há traços de humanidade neles. Mas é importante saber analisar e separar as diferentes características e aspectos que definem esses protagonistas, estando ciente de que são narrativas sobre o colapso moral deles.


Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:06  

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