Relembrando Jornada nas Estrelas: Voyager
(26 de ago. de 2016)
O maior desafio em qualquer franquia é encontrar um equilíbrio em satisfazer seus fãs sem levá-los a exaustão.
O problema é que em Hollywood, a diretriz é explorar o potencial de suas obras até que não rendam mais lucro. Uma mentalidade indiscutívelmente capitalista, e que sempre cria resultados divisórios. Quantos filmes ou seriados foram além da conta e acabaram decepcionando espectadores?
Jornada nas Estrelas: Voyager foi uma demanda da Paramount. O estúdio resolveu entrar com tudo no mercado televisivo, e para isso criaram uma nova rede de TV, a UPN*, competindo diretamente com a redes principais norte-americanas. E foi decidido que o carro-chefe do novo canal seria uma nova série de Jornada nas Estrelas.
*Não era a primeira vez que a Paramount tentava criar uma rede televisiva. Já haviam tentado isso na década de 1970, e na época o carro-chefe seria a abortada série Jornada nas Estrelas: Phase II, cujo piloto acabou virando o primeiro filme no cinema.
Deep Space Nine, assim como A Nova Geração, haviam sido produzidos para o mercado televisivo conhecido como syndication, o mesmo em que se passam reprises, longe dos horários nobres e livres das demandas e exigências de grandes redes. Gene Roddenberry havia lutado ferozmente com os executivos da NBC durante a série original, e foi esse um dos fatores que motivou a mudança para syndication.
Mesmo com a presença de DS9, a Paramount insistia na presença contínua de uma série envolvendo uma nave espacial viajando pelos confins do espaço. A idéia era pegar e ampliar o público que assistiu a sete temporadas da Nova Geração e já estava acostumado ao formato. Foi então que o estúdio colocou o produtor/showrunner Rick Berman como encarregado do projeto.
Logo de cara, Berman colocou Michael Piller e Jeri Taylor, os produtores da Nova Geração, para criar uma nova bíblia, selecionar roteiristas e elaborar a trama e os personagens do novo seriado.
Ninguém ali queria repetir A Nova Geração. Para diferenciar o seriado dos anteriores, tomou-se a decisão de criar uma trama de longo prazo. Assim, se estabeleceu a USS Voyager, cuja missão era perseguir e capturar um grupo de renegados Maquis (ex-membros da frota estelar, introduzidos na Nova Geração e em DS9) que haviam iniciado ataques terroristas contra Cardassianos. Contudo, os dois grupos entram numa distorção espacial, e são jogados do outro lado da galáxia. Eventos nesse novo quadrante fazem com que a Capitã Janeway tome a decisão de destruir a estação espacial responsável por colocá-los ali, a fim de proteger uma sociedade alienígena indefesa. Isso deixa ambas as tripulações presas, e voltar para a Terra levaria 70 anos em velocidade máxima. Como a nave dos Maquis foi destruída, sua tripulação liderada por Chakotay é forçada a integrar a equipe de Janeway e trabalharem juntos para achar uma forma de encurtar esta longa viagem.
Parece a trama de Perdidos no Espaço. Contudo, sendo Star Trek, a premissa era de que os autores tratariam esta situação com o devido realismo e seriedade. E honestamente tentaram sempre que possível. Mas sendo uma série de rede aberta, eles tinham severas limitações no que podiam fazer.
Jeri Taylor havia sido uma das poucas roteiristas experientes que Michael Piller contratara durante A Nova Geração (tanto que foi ela a responsável pelas duas últimas temporadas do seriado enquanto Piller focava em DS9). Eram poucos os roteiristas capazes de se adaptar às regras do universo criado por Roddenberry. Tanto Berman quanto Piller procuravam preservar os parâmetros desse universo, principalmente no controverso quesito ausência de conflito entre seres humanos no Século XXIV, que dividia muitos escritores e dramaturgos. Isso afugentou muitos roteiristas, e para conseguir cumprir a cota de produção na Nova Geração, Piller recorreu a uma iniciativa ousada ao aceitar submissões de fãs e escritores não-profissionais. A paixão por Jornada era tanta que Piller estava disposto a ler as idéias que essas pessoas poderiam ter. Desde que qualquer autor assinasse um contrato autorizando o uso de sua idéia, ela poderia ser lida e até aceita. Foi assim que Piller descobriu novos promissores roteiristas como Ronald D. Moore, René Echevarria, e muitos outros.
Piller manteve essa política durante as duas primeiras temporadas de Voyager. Infelizmente, ele acabou deixando a série no final de sua segunda temporada. Após sete anos responsável por este universo, Piller se via na necessidade de explorar novos rumos criativos. A responsabilidade de preservar as regras de Roddenberry o havia deixado desgastado. Jeri Taylor manteve o controle criativo nas duas temporadas seguintes até eventualmente se aposentar aos 60 anos. Quem assumiu Voyager à partir da quinta temporada foi Brannon Braga.
Braga já tinha anos de experiência, tendo escrito alguns dos melhores episódios da Nova Geração, além de dois dos filmes: Generations e Primeiro Contato. Enquanto Moore focava em mitologia, Braga focava em aventura e conceitos de ficção científica que muitas vezes beiravam o surreal, prestando homenagens à clássicos de David Lynch, além de ser um hábil escritor de personagens com bons diálogos. Braga sempre dividiu fãs devido a certos episódios controversos de ambas as séries, e também por estar envolvido com a morte de Kirk. Braga também alienou fãs ao dizer numa entrevista que nunca havia assistido a um episódio da série original (que foi um fator que motivou Roddenberry a contratá-lo na Nova Geração). Por isso, nem todos aceitaram sua nova posição como showrunner de Jornada. Pessoalmente, acho que dentre os roteiristas de Voyager, não havia ninguém mais qualificado ou capaz de assumir essa responsabilidade. E por mais que não tenha crescido como fã, ele abraçou a responsabilidade e, com o passar dos anos, assistiu finalmente aos episódios da série original.
Quanto aos personagens de Voyager, é fato que eles não tinham a mesma personalidade ou originalidade que seus antecessores na franquia. Não que isso faça deles péssimos personagens. Muito pelo contrário. A Capitã Janeway, interpretada por Kate Mulgrew*, foi um acerto. Sua presença e atitude mostraram que havia espaço para uma capitã feminina, que tivesse a devida autoridade, iniciativa e ao mesmo tempo sensibilidade que alguém como Picard jamais teria.
*Mulgrew não foi a escolha original para interpretar a personagem. Originalmente, os produtores queriam a aclamada atriz Geneviève Bujold para o papel. Ela foi escalada e começou a filmar o episódio-piloto. Contudo, Berman logo viu que, por mais competente que fosse, ela não tinha o fôlego ou disposição de se adaptar ao cronograma televisivo.
O maior potencial desperdiçado em Voyager foi o personagem Chakotay (Robert Beltran). A questão do conflito presente entre os oficiais Maquis e os oficiais da Frota acabou sendo deixada de lado durante a maior parte da série*. Chakotay era para ser um comandante capaz de desafiar Janeway, mas acabou se tornando um oficial mais fiel aos protocolos da frota do que muitos outros. Seu passado indígena também foi pouquíssimo explorado, e nos raros casos em que foi, a execução foi pavorosa recorrendo a todos os clichês de representação indígena em hollywood.
*Ironicamente, este conflito e tensão com os Maquis acabou rendendo alguns excelentes episódios de DS9.
Outros personagens funcionaram melhor. Tim Russ fez um bom trabalho como o chefe de segurança vulcano Tuvok. Roxann Dawson fez um belo trabalho como a engenheira meio-Klingon/meio-humana B'Elanna Torres e Robert Picardo fez um excelente trabalho como o Doutor holográfico.
Outros não deram tão certo. Ethan Phillips fez um trabalho adequado com um péssimo personagem que era o alienígena Neelix, e Jennifer Lien fez um fraco trabalho como a personagem Kes. Já Garrett Wang fez um trabalho sofrível como o Alferes Harry Kim.
Robert Duncan McNeill é um caso interessante. Ele havia participado de um episódio da Nova Geração, The First Duty, como um cadete que assumira a culpa por um grave acidente que ocorrera na academia. Inclusive o personagem, Nick Locano, era visto como um grande líder por personagens como Wesley Crusher. Mas quando escalaram McNeill para Voyager, alguém decidiu criar um personagem novo, o Tenente Tom Paris, mas dando exatamente a mesma história que Locarno tinha, incluindo todo o passado do acidente e a perda da carreira. Quando se muda nomes de personagens assim, geralmente é para evitar que o estúdio pague royalties ao roteirista que criara o personagem original. Não dá para confirmar se foi este o motivo, mas é a impressão que fica. De qualquer forma, McNeill faz um bom trabalho com um personagem que poderia ter sido mais desenvolvido.
Assim como muitos atores da Nova Geração, tanto McNeill quanto Dawson adquiriram uma segunda carreira como diretores de episódios dos seriados.
A série estreou em janeiro de 1995, durante a terceira temporada de DS9. A idéia ao colocar Voyager nos confins da galáxia era explorar novas formas de narrativa e novas aventuras que jamais teriam sido possíveis nas séries anteriores. Estando longe de casa, eles não tinham como ir a um porto para reparos da nave. Eles tinham de conservar seus recursos e dependerem de outras sociedades para ajudá-los em sua jornada. Contudo, não foi bem o que aconteceu nessas sete temporadas. E em muitos casos, eles fizeram cópias mal-feitas de elementos préviamente estabelecidos na franquia. O maior exemplo disso é a raça Kazon. Ninguém negaria que estes foram uma cópia muito mal-feita dos Klingons.
Visualmente, a série começou timidamente, mas com o advento dos efeitos visuais, os produtores começaram a explorar mais possibilidades. Voyager foi a primeira nave a ter a capacidade de aterrisar completamente num planeta. O avanço na computação gráfica permitiu excelentes efeitos nas temporadas posteriores, incluindo batalhas contra os Borg e inclusive uma das melhores cenas da série em seu 100º episódio*, no qual Harry Kim tenta reverter um desastre violando leis temporais, ao impedir que a tripulação cometa um erro que faz com que a nave caia num planeta gelado.
*O episódio, além de ser dirigido por LeVar Burton teve também a participação do ator, reprisando o papel de Geordi LaForge.
A série nunca teve o nível de audiência da Nova Geração. Eventualmente, a Paramount passou a se preocupar e foi atrás de medidas para remediar isso. Foi assim que criaram uma nova personagem durante a quarta temporada. A personagem, Seven of Nine, vivida pela atriz Jeri Ryan, era uma humana que havia sido assimilada pelos Borg. Janeway e a tripulação conseguiram removê-la da coletiva Borg e passaram a reestimular sua humanidade.
A vinda de Ryan custou a presença de Lien na série. A personagem Kes foi rapidamente eliminada do elenco*. Este foi uma questão controversa. Kes vinha se tornando uma personagem mais intrigante, principalmente após a terceira temporada, com mais presença e maturidade. E Lien vinha melhorando aos poucos. Dizem que Mulgrew aceitou mal a mudança súbita de atrizes no meio do caminho, e sempre circularam boatos de que Mulgrew não se dava bem com Ryan em decorrência disso.
*Supostamente, quem era para ter sido eliminado do elenco era Wang. Inclusive, ele não se dava bem com Rick Berman. Só que Wang saiu na capa de uma revista como um dos galãs mais sexys de 1997, o que supostamente teria ajudado a mantê-lo no seriado.
Um fator que entrou em Voyager com a vinda de Ryan foi o apelo sexual. Por mais que passasse mensagens progressistas em sua narrativa, Star Trek sempre teve uma relação tímida com a sexualidade até por ser um produto de censura livre, exibido fora do horário nobre. Haviam fãs que tinham fantasias com personagens como Deanna Troi ou Jadzia Dax. Na busca pelo público adolescente, os produtores colocaram Seven of Nine em um uniforme que realçava suas curvas, estimulando a imaginação de muitos. Numa série que promovia igualdade entre os sexos tendo uma capitã feminina, além de várias outras personagens femininas em posições de destaque, isto foi visto como um retrocesso dentre muitos fãs. Outro revés foi que a inclusão desta personagem acabou por reduzir a presença do restante do elenco.
Em defesa da personagem, ela foi muito bem desenvolvida nos roteiros e Ryan deu uma bela performance. Ela se tornou aquela que analisa a humanidade por outro ângulo, seguindo o mesmo caminho que Spock e Data.
No outro lado da moeda, não há como negar o apelo que os Borg tem no universo de Jornada. Eles renderam alguns dos episódios mais aclamados da Nova Geração, além do sucesso de Primeiro Contato nos cinemas. Para Braga, foi natural levar Voyager nessa direção, até porque já era estabelecido na mitologia da franquia que os Borg dominavam aquele canto da galáxia e era inevitável que a tripulação cruzaria com eles no caminho pra casa.
Mas também pode se admitir que os Borg foram usados além da conta durante a série, perdendo boa parte da originalidade e do fator surpresa que eles tinham originalmente. Quando Voyager chegou ao fim em 2001, eles já não impressionavam mais como vilões.
Voyager contou vários tipos de histórias. Um de seus fatores positivos foi o uso do Doutor, levantando a questão de que se hologramas tem os mesmos direitos que seres humanos comuns. Assim como fizeram com Data e os direitos de andróides na Nova Geração, Voyager levantou essa questão. Se você é programado, o quanto você é sentiente? Ao decorrer destes sete anos, vimos o Doutor ir muito além de seus parâmetros originais, vivendo experiências inusitadas.
Voyager foi o primeiro trabalho para vários jovens roteiristas. Dentre eles, Bryan Fuller começou sua carreira ali. Hoje, ele é um dos showrunners/produtores mais aclamados responsável por séries como Hannibal e Pushing Daisies. Inclusive, Fuller é atualmente o responsávelo pelo desenvolvimento da nova série, Star Trek Discovery, que deverá estrear em 2017.
Após o fim de DS9 em 1999, foi decidido que não teria outra série no ar até que Voyager fosse devidamente concluída nos dois anos seguintes que ainda tinha. Certamente tanto Berman quanto a Paramount foram percebendo o risco de sobrecarregar fãs com material, levando a franquia a uma inevitável fadiga. Durante a última temporada de Voyager, Braga reduziu seu envolvimento com a série para focar no desenvolvimento de Star Trek: Enterprise, que iria ao ar logo em seguida. Kenneth Biller, o roteirista mais experiente do seriado, assumiu a última temporada como produtor, dando um foco maior na relação entre os personagens.
No fim das contas, não posso nem culpar muito Voyager por suas falhas. Mesmo a série original, A Nova Geração e DS9 tiveram vários episódios de péssima qualidade, detestados por fãs de forma unânime. Voyager teve apenas um nesse patamar: Threshold, exibido na segunda temporada, que lida com uma situação na qual Paris ultrapassa Warp 10 com uma nave auxiliar e acaba se transformando num mutante. O maior crime desse episódio é que o Doutor consegue reverter a mutação de Paris. Se fosse assim, porque não colocavam a nave em Warp 10 até chegar em casa para então reverter a mutação de todos posteriormente? Nada nesse episódio funciona, e o próprio Braga é um de seus maiores críticos.
O problema principal de Voyager foi desperdiçar seu potencial e não ir além. Todas as histórias contadas nesta série já haviam sido produzidas nas encarnações anteriores de alguma forma ou outra. Em 1987, dava pra justificar isso. Em 1995 e além, já não dava, ainda mais com DS9 ao seu lado tomando rumos narrativos ousados como colocar a Federação em guerra durante várias temporadas. Sempre que Voyager tentava uma idéia ousada, os roteiristas eram obrigados a voltar atrás no fim do episódio. A UPN fazia questão de exibir episódios na ordem que bem desejassem. Isso desencorajava os produtores a criarem arcos narrativos à longo prazo. Em 1997, Brannon Braga e Joe Menosky haviam concebido o conceito do "ano do inferno", no qual Voyager passaria um ano inteiro sendo caçada por uma raça alienígena violenta e sofrendo danos drásticos, e diversas mortes de tripulantes, sem chance de reparos ou descanso. Seria uma versão ultraviolenta de Battlestar Galactica. Essa era a idéia original da quarta temporada, e acabou sendo reduzida a um episódio de duas partes, e toda a narrativa é revertida no final quando uma intervenção temporal anula todo a jornada.
De qualquer forma, a série teve vários bons episódios ao decorrer das temporadas. Marina Sirtis e Dwight Schultz, da Nova Geração, reprisaram os papéis de Deanna Troi e Reg Barclay e exerceram um papel na tentativa de estabelecer contato direto com Voyager nas últimas temporadas.
O episódio final mostra eles chegando em casa, mas recorre a uma história de viagem no tempo muito batida para atingir esse objetivo. A forma como a Janeway do futuro resolve alterar sem escrúpulos os eventos para que sua tripulação chegue em casa um pouco mais cedo não é muito consistente com a personagem estabelecida. Mas consistência também sempre foi um problema recorrente na narrativa de Voyager.
O crime narrativo maior foi este final não ter abordado a forma como esses personagens se readaptariam em sua volta à Terra. Como a Seven of Nine se encaixaria no coração da Federação? Qual seria o fruto da evolução do Doutor (que ainda não tinha nome próprio após sete anos)? Tinha também a questão dos Maquis. Os membros de Voyager eram os únicos restantes do grupo, até pelo fato do restante ter sido dizimado pelos Dominion em DS9 anos antes. Isso até rendeu um bom episódio de Voyager chamado Extreme Risk, mas a série não examinou essa questão além disso. Foi outra situação de potencial desperdiçado.
Com o fim de Voyager em 2001, Berman já estava ocupado produzindo o último filme da Nova Geração e preparando para lançar Jornada nas Estrelas: Enterprise com Braga. E desta vez, eles estavam determinados a sacudir mais a franquia pelo bem deles e também dos fãs.
Fique com algumas cenas da série, logo abaixo, incluindo a sequência de abertura cuja trilha foi uma excelente composição de Jerry Goldsmith:
Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:56
Eu estou assistindo a série Voyager na terceira temporada e estou amando. A capitã é ótima!!! Acho que ela é o melhor capitão de toda a saga Star Trek.