Jon Snow - O Protagonista Passivo

(19 de jun. de 2020)




Tendo passado praticamente um ano desde o final de Game of Thrones, achei que já era hora de reavaliar certos aspectos da série. Longe o suficiente da polarização e do final controverso, acho que é hora de falar um pouco sobre Jon Snow.


Jon Snow dá um bom estudo sobre a função de um protagonista numa história. Digo isso porque honestamente, ele não é um personagem digamos ativo. Snow sempre foi passivo em todos os aspectos. Iremos lidar com SPOILERS nesse argumento. Fica de aviso.


Lembrando, Jon Snow é filho de Lyanna Stark, fruto de seu romance proibido com o príncipe Rheagar Targaryen. Só que durante anos a série - e os livros na qual é baseada - mantiveram esse fato como segredo. Durante anos, Snow sempre foi visto como o filho bastardo de Ned Stark - que supostamente teria tido um caso com uma garota fora do casamento duranta a guerra.


E no mundo fictício de Westeros, ser um bastardo é um estigma pior do que aquele que sofre diariamente preconceito racial ou mesmo aqueles que sofrem abusos por terem sexualidades diferentes. O fato da pessoa ter sido fruto de um relacionamento fora do matrimônio é visto como o pior dos pecados, mesmo ela não tendo nenhuma culpa pelo fato. Isso ocorre principalmente graças a ignorância da população de Westeros, pobre e desprovida de qualquer instrução ou educação formal, cuja única fonte de referência para construção de ética e moral vem das instituições religiosas. É fácil direcionar o ódio de um desamparado para um alvo fácil como um filho bastardo. Assim, as instituições se protegem.


Por isso mesmo, o caráter de Snow foi construído nessa passividade. Ele nunca pôde sentar-se na mesma mesa de jantar que seus irmãos de criação (isso foi garantido pela madrasta tradicionalista Catelyn Stark). Snow nunca pôde contestar sua posição na família ou na sociedade. Desde criança tem sido instruído a sempre seguir as leis e jamais questionar o mundo. Sempre foi denegrido por sua herança e sempre foi lhe lembrado que jamais teria um futuro promissor. Ser o bastardo seria seu fardo e sua responsabilidade.


Por isso mesmo, Snow foi para a muralha e se tornou mais um dos servos da noite, fazendo juramento de jamais abandonar seu posto ou tomar uma esposa. O resultado disso foram cinco temporadas com Snow na muralha ou explorando as terras ao norte, sempre no cumprimento de sua missão de proteção de Westeros. Só que ao seguir esse caminho, Snow se tornou essencialmente o protagonista passivo.


Os demais personagens de Game of Thrones sempre foram ativos, ecléticos e repletos de personalidade. Arya Stark, Tyrion Lannister, Cersei Lannister, Jaime Lannister, Sansa Stark, Daenerys Targaryen. Todos personagens distintos que impulsionam a trama. A Rainha dos Dragões com seu discurso de liberdade aos oprimidos e ódio pelos usurpadores do trono. A forma como Cersei sempre combateu o patriarcado para atingir suas ambições. A forma como Arya internalizou seu desejo de vingança e assim formou seu caráter assassino. O desejo de Tyrion ser visto como mais que um anão, e conseguir merecer o amor de sua família.


Snow nunca foi definido por qualquer paixão ou desejo. Sempre foi o garoto obediente que seguia as ordens. A personagem mais próxima desse tipo nessa história talvez seja Brienne, com seus juramentos e promessas (e ainda assim tem mais personalidade e ímpeto que Snow).


De certa forma faz sentido que Snow seja o avatar passivo da muralha. Suas ações para conter as investidas dos Selvagens e dos Caminhantes Brancos servem um propósito na trama. Mas também com o propósito de criar uma ameaça externa que une todas as facções de Westeros na reta final da trama. É por isso que eu considero a batalha final contra os Caminhantes Brancos até decepcionante, porque não dialoga com o que pode ser considerado o fio central da série, que é o conflito entre as facções. O aspecto que mais atraía interesse do público.


E é por isso também que o romance entre Snow e Daenerys não convenceu. Além do fato dos dois atores não terem afinidade, é evidente que esse romance foi criado de forma artificial, pegando carona na premissa de Jon Snow na verdade ser descendente dos dragões assim como ela, e esperando que isso gerasse um conflito novo.


Só que esperar conflito quando um dos personagens é tão passivo assim é esperar demais. O próprio Snow não desejava uma posição de liderança. Ele ganhou a posição na muralha após o assassinato de seu líder. E só foi colocado na liderança da investida contra Ramsay Bolton porque era o único Stark masculino vivo perante os aliados, e porque nenhum deles aceitaria Sansa, uma menina, como líder. Snow sempre liderou não pela ambição, mas pela necessidade de se fazer o certo. Isso mostra como ele foi a melhor cria de Ned Stark, o mais capaz de encarnar os valores do pai (mesmo que adotivo).


O mais interessante é que Jon Snow teve um romance muito mais ardente e interessante com a selvagem Ygritte do que com a Rainha dos Dragões. Ali dava para ver uma faísca de paixão e até mesmo vontade própria por parte de Snow, que mesmo sendo o inocente em aprendizado do relacionamento, ainda demonstrava paixão e personalidade própria*. Snow sempre se sentiu muito mais a vontade dentre os Selvagens exilados. Outro momento que quebrou a passividade de Snow e mostrou algum caráter foi quando ele abandonou a Irmandade após ter sido assassinado por seus colegas (e ressuscitado, para que não fiquem em dúvida). Nquele ponto da trama (sexta temporada) foi talvez a última vez que Snow mostrou esse lado dele, esse resquício de individualidade.


*Também ajudou o fato de Kit Harington ter muito mais afinidade com Rose Leslie, a atriz que encarnou Ygritte.


Vale lembrar que Game of Thrones, a obra como um todo, foi concebida por George R. R. Martin como uma desconstrução do gênero da fantasia, quebrando e subvertendo expectativas de como uma história assim deve ser contada. Não há heróis absolutos nem vilões absolutos. A violência é sangrenta e a trama sempre terá consequências. Você vê isso na primeira temporada, quando matam Ned Stark, o protagonista que deveria ter exposto toda a corrupção e situação de incesto na Corte Real, e acabou pagando com a vida. Vemos isso novamente na terceira temporada durante o fatídico Casamento Vermelho, que culmina com as mortes de mais Starks.


Por isso mesmo, fiquei surpreso com a revelação de que Snow seria um Targaryen (fato que até hoje não foi confirmado nos livros - ainda não concluídos). Em primeiro lugar porque isso seria uma traição dessa mesma subversão narrativa. Colocar Snow nesse pedestal seria revitalizar o conceito do herói absoluto, com uma missão e cumprindo seu lugar na profecia. Em segundo porque a ideia de Snow ser de linha sanguínea real é menos interessante do que a ideia de um bastardo ser o herói por si só.


Felizmente, mesmo com os tropeços narrativos das últimas temporadas, a série conseguiu honrar essa questão narrativa de nada ser absoluto nesse mundo. Quem lembra sabe que Snow assassinou Daenerys após ela conduzir o massacre a população da capital e tomar o trono a força. A consequência desse atentado foi ele ser banido mais uma vez para o norte. Uma vez o bastardo exilado, sempre o bastardo exilado. Snow assim termina a história como começou, criando uma forte simetria. Considero essa a melhor forma de concluir essa obra. Pelo menos, a mais consistente com sua premissa e a forma como se vendeu ao público.


É muito mais gratificante quando vemos que é o anão que termina essencialmente como a figura política mais influente no reino. Na narrativa medieval tradicional, jamais imaginaríamos que o Bobo da Corte pudesse ser o personagem capaz de subverter essas mesmas expectativas. Mas foi isso que aconteceu com Tyrion Lannister. Esse já havia nascido num berço de ouro, dentro de uma família poderosa. Já tinha status e poder. Não começou do zero que nem Snow. Mesmo sendo definido por sua estatura, ele subverteu a expectativa de Bobo da Corte e garantiu sua posição privilegiada no final da história. Mostrou que tinha caráter e nuance. Esse sim impulsionou a trama.


Se Snow tivesse terminado no trono, invicto, acho que seria uma traição da ideia original de Game of Thrones. Você pode cavar seu destino nesse mundo, mas isso não lhe garante que terá o mesmo fim glorioso que um protagonista de ficção convencional.



Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 11:36  

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