Quando Westworld acerta

(31 de mar. de 2020)




Qualquer um que passa pela HBO acaba eventualmente vendo algum comercial de Westworld.


Num contexto audiovisual, a série representa todo o pedigree do canal. Produção requintada com atores do mais alto calibre, sets e locações elaboradas filmadas com técnicas de ponta, e ambições narrativas aliadas a mais alta liberdade de criação que só um canal desse porte oferece aos autores. No ponto de vista de marketing, a série é a sucessora espiritual de Game of Thrones, que era o carro-chefe do canal. Em outras palavras, o produto blockbuster da companhia.


Mas pra quem não conhece a série, fica a impressão de que é uma obra difícil de acompanhar. E não é uma impressão equivocada. Baseada no filme original de Michael Crichton (de 1973), a série foi desenvolvida por Lisa Joy e Jonathan Nolan (sim, irmão do famoso Christopher Nolan). E ambos os escritores sempre tiveram uma queda por desenvolver mistérios narrativos e conceitos de ficção científica relacionados a relação do homem com a tecnologia.


Só que um dos atrativos de Westworld é também seu calcanhar de Aquiles. Essa obsessão com o mistério na narrativa prejudica muito a série. Na primeira temporada, isso era aceitável e até equilibrado com a história cativante e personagens inesquecíveis. Pra quem lembra, aquela temporada lidava com a personagem Dolores (Evan Rachel Wood), horas ela cavalgava por um jovem chamado William (Jimmi Simpson) e noutras era perseguida por um velho vestido de preto (Ed Harris).


E vários espectadores astutos deduziram que tanto William quanto o Homem de Preto eram a mesma pessoa e que a trama se passava em duas épocas distintas.


Não era a primeira vez que espectadores eram capazes de antecipar uma reviravolta narrativa (já havia acontecido com LOST, anos antes). Mas fica a impressão de que Nolan e Joy, cientes dessa resposta, resolveram investir ainda mais em mistérios na segunda temporada, na tentativa de ficar sempre um passo a frente.


E o resultado disso foi uma segunda temporada, que eu considero, digamos, medíocre.


No final da primeira temporada, estava claro o que estava em jogo na trama. Dolores havia assassinado Ford e os convidados, dando início a inevitável rebelião dos anfitriões robôs do parque. A expectativa era que a segunda temporada desse continuidade a isso de forma direta. Não foi o caso.


A temporada começou criando mistério com corpos de anfitriões boiando num lago, e a partir daí foi tudo se complicando, sem sabermos ao certo em que tempo se passava cada cena ou sequência. Qualquer cena com Bernard (Jeffrey Wright) resultava no espectador coçando a cabeça pra entender o contexto da ação sem conseguir extrair a intenção dramática daquele momento. Em outras palavras, não dava pra curtir a história quando a preocupação dela era criar mais confusão ainda. Não dava pra acompanhar a rebelião de robôs quando nem sequer sabíamos se aquilo era real ou não.


Isso, aliado a uma tendência de criar episódios abertos, sem começo, meio e fim, não ajudava nem um pouco. A tendência em Westworld é iniciar a temporada de forma impactante, mas essa diluição narrativa faz com que os episódios no meio da temporada percam coesão. Quando os eventos são exibidos fora de sequência sem qualquer lógica narrativa ou contexto específico, é evidente que qualquer espectador que não esteja dedicando 110% de atenção se perderá com facilidade (Nolan claramente puxou essa tendência do irmão).


As histórias raramente ficam contidas. Uma subtrama (ou um personagem secundário) que começou no terceiro episódio é esquecida por vários episódios seguintes, e é trazida de volta no oitavo episódio. Quem vai lembrar?


Chega a um ponto que fica difícil pra qualquer um lembrar que evento aconteceu em que episódio. Defendo a ideia de que se o espectador não consegue lembrar de detalhes, é porque a trama não está sendo capaz de prender a atenção como deveria. Nesse contexto, surgem YouTubers e analistas especializados em resumir a temporada num vídeo*.


*Por sinal, vale a pena conferir o vídeo da Carol Moreira, que sintetiza as duas primeiras temporadas da série em ordem cronológica. Usei ele pra me inteirar antes da estreia da terceira temporada.


E mesmo assim, ainda tivemos momentos bons na temporada, fáceis de lembrar, tais como o quarto episódio, no qual descobrimos que a consciência do fundador Delos (Peter Mullan) havia sido transmitida pro corpo de um anfitrião, ou o oitavo episódio, que mostra toda a trágica jornada do nativo-americano Akecheta (Zach McClarnon). O potencial pra boas histórias permanece na série, mas a forma como elas são contadas fica a mercê das tendências e tiques narrativos dos autores.


E não é a toa que a Maeve (Thandie Newton) se destacou como a personagem mais interessante e querida da série. É personagem com motivação mais simples e de mais fácil aceitação do público. Anfitriã que descobre o que ela é, e que resolve se libertar das correntes que a prendem enquanto tenta resgatar a filha que foi sua num outro programa do parque. É uma tendência natural na televisão em geral. Quando a narrativa fica complicada, o público se apega a um ou uma personagem e torcem por ele/ela independente do resto.


Felizmente, parece que Nolan e Joy levaram essa frustração com a segunda temporada em conta ao criar a terceira. Sem entrar em muitos detalhes (pra evitar SPOILERS de quem ainda não viu), a história ficou bem mais fácil de seguir, sem se preocupar em criar mistério em cima de mistério.


Com três episódios exibidos até agora, é bem mais gratificante seguir a jornada da Dolores fora do parque no mundo real, onde ela tenta dar continuidade a sua guerra contra a humanidade. O surgimento do novo personagem Caleb (interpretado pelo eterno Jesse Pinkman, Aaron Paul) também ajuda, pois agora temos um personagem fora do círculo narrativo tradicional da série, um personagem humano que está descobrindo aquele mundo pela primeira vez. E até agora, não me senti perdido. Muito pelo contrário, cada episódio está mostrando exatamente porque a série ainda funciona mesmo depois dos tropeços. O fato de cada um ter histórias contidas, com começo, meio e fim e foco num personagem específico ajuda e muito, e sem perder o aspecto serializado.


No fundo, se parar pra pensar, o Westworld original era uma premissa bastante simples. Parque de diversões composto por robôs que se rebelam contra a humanidade. A vantagem da série foi adicionar questões mais complexas de existencialismo artificial. E não é necessário criar uma narrativa não-linear em excesso pra que isso funcione. Pode ser que nem todo mundo concorde, mas a terceira temporada até agora por enquanto mostra que isso é possível.


Quando Westworld acerta, digamos que acerta e muito.



Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 11:41  

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