É fato que quando filmes são lançados no Brasil, sempre há alguém pronto pra bagunçar a tradução do título e confundir completamente o público.


Jornada nas Estrelas: A Nova Geração foi a tradução que usaram para o filme Star Trek: Generations. Mais tarde, o filme foi rebatizado aqui como Jornada nas Estrelas: Generations. Qual teria sido o problema em usar o termo Gerações afinal? Difícil de pronunciar. Péssimo para marketing? Vai entender. Enfim....


No período após a morte de Gene Roddenberry, a Paramount passava por longas discussões e argumentos a respeito do futuro da Nova Geração na TV. A série havia se tornado um sucesso indiscutível, mas a questão de quanto tempo isso permaneceria viável não estava resolvida.


A questão foi resolvida em fevereiro de 1993, quando Rick Berman, produtor/showrunner do seriado, convocou os roteiristas Brannon Braga e Ronald D. Moore para seu escritório. Ele falou que havia passado meses discutindo com o estúdio e que havia sido apontado para produzir os filmes da Nova Geração no cinema, e que eles haviam sido escolhidos para roteirizar o projeto. E com isso, a série teria uma sétima e última temporada para ser concluída enquanto trabalhavam no filme.


A Paramount tinha delineado um plano específico para este filme. Ele não seria apenas o primeiro filme com a tripulação de Jean-Luc Picard na telona. Ele seria um filme que passaria da geração antiga para a nova. É claro que isso trouxe consigo a primeira grande complicação narrativa. A Nova Geração se passava quase 80 anos após a série original. Como fazer com que James T. Kirk tivesse um encontro cara-a-cara com Picard?


A trama é tudo, menos simples. Após os eventos do sexto filme, Kirk e a tripulação se aposentam até que são chamados para participar da cerimônia de lançamento de uma nova USS Enterprise, comandada por uma nova tripulação. Kirk, junto com Scotty e Chekov, participam do evento. Tudo corre bem até que são chamados para resgatar uma nave com refugiados presos numa barreira intergalática. O evento corre como planejado, só que Kirk que foi ajudar o resgate ativando um raio defletor é sugado para fora da nave quando um rombo é aberto. Kirk é dado como morto.


A trama salta 78 anos para o futuro, após os eventos da sétima temporada. Durante a cerimônia de promoção para Worf, a Enterprise de Picard é chamada para uma estação espacial que foi atacada por Romulanos. Eles estavam atrás de um componente químico capaz de implodir uma estrela. Lá, eles encontram o Dr. Soran (Malcolm McDowell), responsável pelo projeto. Ele consegue implodir a estrela local. No processo, Geordi LaForge é nocauteado por Soran, e ambos são resgatados por uma nave Klingon comandada pelas irmãs Lursa e B'Etor. Picard conversa com Guinan (Whoopi Goldberg) e descobre que ela e Soran são membros da mesma raça que havia sido dizimada pelos Borg anos antes, e que a barreira que prendera a nave era um portal para um Nexus temporal onde qualquer pessoa era capaz de reviver sua vida, corrigindo os erros do passado.


Isso leva a Picard confrontar Soran no planeta Veridian III. Soran revela que irá implodir a estrela do sistema a fim de mudar o curso da barreira para que possa reentrar nela, mesmo que a implosão da estrela acaba com 200 milhões de vidas inocentes. Geordi é resgatado da nave Klingon. Picard não consegue impedí-lo de lançar o míssil, enquanto que a Enterprise se envolve numa batalha com os Klingons, que são destruídos. Contudo, o núcleo da Enterprise entra em estado crítico e explode, lançando a seção disco numa aterrisagem forçada no planeta. A estrela implode, matando a todos. Picard e Soran entram no Nexus. Picard revive a vida que podia ter tido, mas não teve. É então que percebe que para restaurar o passado, ele precisará de ajuda. Assim, ele recorre a Kirk. Após convencê-lo de que o Nexus não é real, os dois capitães voltam a Veridian e impedem Soran de lançar o míssil. Infelizmente, Kirk morre na luta. O filme termina com Picard enterrando a lenda e a tripulação da Enterprise sendo resgatada por naves da frota.


De cara se percebe como os roteiristas tiveram de improvisar* para fazer esta trama funcionar. É por esse e outros motivos que o filme não funciona tão bem quanto deveria.


*Uma das idéias originais de Braga era colocar as duas Enterprises em rota de colisão, se enfrentando em batalha. Impraticável, mas interessante.


O início do filme é interessante, mas parece mais um minifilme separado do resto da trama. Há um certo artificialismo nessas cenas, e muitas delas fazem a tripulação da Enterprise B parecer incompetente demais para que Kirk se sobressaia como o herói em meio à crise do resgate. Outro detalhe que se percebe é o uso de Scotty e Chekov em cenas que claramente haviam sido escritas para Spock e McCoy.


DeForest Kelley já estava aposentado. Leonard Nimoy, que já havia trabalhado com Berman na Nova Geração, até foi chamado para dirigir o filme. Contudo, Nimoy não gostou do fato de ter sido chamado quando a trama já estava bem desenvolvida e percebera que a Paramount tinha tanto controle que ele não teria tanta liberdade criativa. Por isso, ele abriu mão da oportunidade. Mesmo Nichelle Nichols e George Takei também não retornaram até porque de certa forma, a jornada do elenco original já havia terminado no último filme.


O filme foi dirigido por David Carson, que já havia dirigido vários episódios da Nova Geração (incluindo o excelente e impactante Yesterday's Enterprise) e também o episódio-piloto de Deep Space Nine (além de alguns outros). Carson era um diretor de TV, acostumado a seguir o padrão estabelecido pelos produtores. No caso, Star Trek era a estética e sensibilidade visual de Gene Roddenberry que foi mantida por Berman. Um dos fatores positivos do filme sem dúvida são seus visuais. Carson sempre se sobressaiu dentre os demais diretores do seriado ao gerar fortes imagens. Com o orçamento e o cronograma de um filme, ele consegue bem mais que isso. É verdade que em matéria de orçamento, o filme não foi nem um pouco mais caro que os anteriores, mas a equipe de Berman já estava especializada em extrair imagens de qualidade dentro dessas limitações, o que fizeram de Generations o filme com melhores visuais desde o primeiro. O orçamento e a escala permitiram também os designers a refazer a ponte de comando da Enterprise, criando um resultado final de alto contraste e impacto visual. Nunca que a ponte seria filmado desta forma durante o seriado, com uma direção de fotografia marcante feita pelo já falecido John A. Alonzo.


A trilha foi composta por Dennis McCarthy, que foi o compositor principal da Nova Geração, Deep Space Nine e posteriormente Enterprise (além de compor vários episódios de Voyager). O estilo de McCarthy sempre foi melódico e contido, bastante distinto dos estilos temáticos e bombásticos de compositores como Jerry Goldsmith e James Horner. Não é a melhor das trilhas, mas se encaixa bem com o teor do filme.


Tematicamente, o filme lida bastante com o conceito de mortalidade. Picard lida com a morte do irmão e sobrinho. Tanto Guinan quanto Soran fugiram para o Nexus para não ter de lidar com a morte de entes queridos nas mãos dos Borg. Kirk consegue morrer duas vezes no mesmo filme. A primeira que foi na verdade sua entrada no Nexus, mas que foi vista como morte por seus compatriotas do Século XXIII. A segunda morte sendo a definitiva.


O filme funciona melhor quando lida com a tripulação de Picard e seus esforços para desvendar a questão de Soran estar destruindo estrelas. Uma subtrama que não tem o mesmo êxito envolve o Comandanta Data instalando o chip de emoção que seu criador, o Dr. Noonien Soong, havia dado para ele no seriado. A tentativa dele lidar com novas emoções não complementa o resto do filme de maneira alguma. E certas situações acabam sendo muito forçadas, sacrificando a integridade do andróide em função de piadas baratas.


Uma cena de Data que funciona bem é a cena na cartografia estelar onde ele lida com a culpa de deixar Geordi ser capturado, e Picard tem de forçá-lo a fazer seu trabalho em descobrir o paradeiro de Soran. Belíssimos visuais e uma bom conflito de personagens que flui de forma natural.


Fica duvidosa também a inclusão das irmãs Lursa e B'Etor, introduzidas na série. Supostamente, isso foi uma decisão da Paramount, em que Klingons tinham que participar como vilões. Mas não faz muito sentido colocá-las como aliadas de Soran, e menospreza um pouco o quanto Soran teria justificativa em sua jornada homicida. Se bem que se fosse para criar simpatia no vilão, não teriam escalado Malcolm McDowell. O motivo principal da inclusão desses Klingons renegados (afinal, ainda tinha um tratado de paz com a Federação neste período) foi uma manobra dos roteiristas para pôr um fim a Enterprise D. O rapto de Geordi e o uso do VISOR para explorar as fraquezas da nave foram uma manobra de roteiro descarada. Destruir a Enterprise de Picard tinha um único motivo: permitir a criação de uma nova nave para futuros filmes.


Não vou dizer que não funciona, até porque tanto a batalha quanto a aterrisagem forçada do disco no planeta são excelentes. Sempre que tinham de separar o disco da seção motor da nave na série, era uma situação forçada demais como se tinham de achar uma justificativa para usar as capacidades do brinquedo*.


Um fato interessante é que Moore e Braga haviam tido a idéia para a aterrisagem forçada do disco durante o seriado. Esta era para ser a trama do episódio final da sexta temporada, mas a iniciativa era complexa demais e cara demais para ser produzida no seriado e foi vetada.


*Ironicamente, o modelo da Enterprise de Kirk usado nos seis primeiros filmes também tinha a capacidade de separar o disco. Inclusive, tinha uma cena semelhante no roteiro do primeiro filme, mas acabou sendo cortada.


O filme cambaleia e cai duro no chão quando Picard entra no Nexus. A idéia de Picard ter uma família celebrando natal não faz sentido nenhum. Em primeiro lugar, numa sociedade que havia superado crenças religiosas ou obsessões materiais, a idéia de celebrar natal não se encaixa. Em segundo, Picard já era estabelecido como um homem dedicado ao trabalho que não tinha tempo para família. Mesmo se Picard tivesse algum arrependimento do rumo que tomou, não acredito que ele tivesse uma vontade tão mundana de ter uma família estilo comercial de margarina. Quem assistiu ao episódio The Inner Light na série sabe muito bem que tipo de vida Picard gostaria ter tido caso não tivesse sido capitão.


Mas o problema maior do Nexus é que Picard não faz nenhum esforço para realizar que tudo aquilo não passa de uma ilusão e passa o resto do filme tentando convencer Kirk do mesmo. Em seguida, tudo que eles tem de fazer é desejar sair do Nexus e assim o conseguem, na época e local mais convenientes possível que é em Veridian III, justamente antes do míssil ser disparado.


No comentário que gravaram para o DVD, tanto Brannon Braga quanto Ron Moore debatem a lógica desse terceiro ato. Se estão numa existência atemporal, com a capacidade de sairem para onde quiserem, porque Kirk e Picard iriam se colocar na mesma situação que Picard havia falhado em prever? Por que não voltar alguns meses antes e não prender Soran enquanto está no banheiro ou algo parecido? Como Braga afirma, não se pode deixar o público fazer essas hipóteses. A trama tem de ser mais bem amarrada.


No fim das contas, o filme jamais iria agradar a todos os fãs. Matar Kirk sempre foi uma decisão controversa. Mesmo Ron Moore, um fã ardente da série original, sentiu forte culpa ao datilografar a morte de seu herói de infância. Esse é outro ponto que Moore e Braga concordam*. A morte de Kirk jamais seria unânime. Para muitos, Kirk é um mito, e a idéia de que se pode matar um mito sempre terá seus detratores. Spock sobreviveu graças à demanda dos fãs e o uso prático do misticismo vulcano. Como humano, Kirk não teria a mesma oportunidade.



William Shatner faz um belíssimo trabalho em sua última aparição como o personagem, mostrando a velhice, o arrependimento e até mesmo uma irreverência cômica que nem sempre o personagem teve mas foi adquirindo com o passar dos anos. Kirk uma vez disse no quinto filme para Spock e McCoy que enquanto eles estivessem juntos, ele jamais morreria. Se morresse, seria sozinho. Felizmente, ele teve Picard ao seu lado em seus momentos finais.


*E já que venho citando o nome deles o post inteiro, recomendo fortemente que fãs assistam ao DVD/Blu-Ray do filme com comentários em áudio dos dois roteiristas. Ron Moore e Brannon Braga tem imensa experiência com a franquia, tendo trabalhado na maioria dos seriados, e são capazes de examinar objetivamente, e com franqueza, tudo que deu errado neste filme. Geralmente, filmes blockbusters não possuem material extra com postura crítica até porque estúdios não gostam sempre de publicidade negativa.


Vale mencionar também que o confronto final entre Kirk e Picard contra Soran tinha um final diferente. Originalmente, Kirk era atingido mortalmente por um disparo de phaser em suas costas por parte de Soran. Quando o primeiro corte do filme foi exibido para executivos da Paramount, todos ficaram silenciosos sem reagir a cena. Logo após a exibição, a presidente do estúdio, Sherry Lansing, se reuniu com Berman e afirmou que o filme era bom, mas tinha um péssimo final, e em seguida financiou uma série de refilmagens. Foi assim que Moore e Braga reescreveram o terceiro ato, criando a situação em que Kirk cai da montanha junto com os destroços de uma ponte após recuperar o controle remoto que opera o míssil. Essas cenas foram filmadas em Valley of Fire, próximo de Las Vegas.


Picard dá uma boa resumida nos temas do filme em seu final. O que importa nessa vida não é o quanto vivemos, e sim como vivemos nossas vidas. Afinal de contas, somos todos mortais. E no fim, Kirk morreu fazendo uma diferença, salvando inúmeras vidas mesmo que não estando no comando de uma nave, que sempre foi seu propósito principal.


No fim das contas, o filme rendeu dinheiro na bilheteria mesmo com críticas divididas. O simples fato do filme colocar Kirk e Picard juntos em cena garantiu que o público viria independente da qualidade. Foi um evento tão badalado e divulgado na mídia que até rendeu uma capa na Revista Time.


Kirk passou desta pra melhor, e a tocha passou para Picard e sua tripulação, com futuros filmes garantidos sob a produção de Berman. Enquanto isso, Berman tinha de cuidar de dois seriados ao mesmo tempo, Deep Space Nine e Voyager.


Fique com a cena final de James T. Kirk, logo abaixo:




Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:05  

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