Mais um Tropeço da Disney

(27 de abr. de 2020)




A Disney não é uma megacorporação à toa. O histórico de animação dela fala por si só. O esforço em construir mega-parques no mundo todo mostra seu compromisso com o entretenimento e a diversão. Ao mesmo tempo, é uma companhia que tem certas práticas merecedoras de crítica.


Claro que alguns argumentarão que é um mimimi desnecessário fazer um texto apontando os erros da companhia. Mas o fato dela ter todo esse alcance faz dela uma entidade muito visível, e que obviamente exerce muita influência sobre seus consumidores. E não é passível dessas críticas só porque agrada a muitos com suas obras e produtos. Companhia nenhuma nesse mundo é imune a questionamentos (e muitas, eu diria, são repreensíveis em certos aspectos).


E se pararmos para pensar a fundo, conseguimos perceber que companhia nenhuma atinge um sucesso e um capital desse nível sem praticar certas ações moralmente questionáveis. Até porque essas mesmas ações não são necessariamente condenáveis em um ponto de vista econômico.


Afinal, qual foi a última que a Disney fez para merecer esse texto? Digamos que tem a ver com a reedição de filmes em seu catálogo.


Nesse último mês, a Disney relançou Splash - Uma Sereia em Minha Vida, comédia romântica e filme clássico de 1984 dirigido por Ron Howard, com Tom Hanks, Daryl Hannah e John Candy. O filme foi relançado no app de streaming Disney +.


E essa versão foi reeditada para cortar uma cena na qual aparece (de forma muito breve) o traseiro da sereia vivida por Hannah.


Essa é uma decisão problemática em inúmeros aspectos. Em primeiro lugar, abre um precedente para um estúdio reeditar suas produções sem qualquer input dos autores da obra, e sem sequer consultar o público que abraçou o filme há tantos anos.


Vale lembrar que nada disso é novidade para o estúdio do camundongo. Além das já conhecidas práticas de monopólio de mercado, a Disney tem um péssimo histórico quando se trata de seu acervo de obras. Durante décadas, eles seguram filmes dentro do famoso "cofre", preferindo não relançá-los. O propósito disso? Fazê-lo tão raro a ponto de levantar seu valor e relançá-lo a preços altíssimos. Isso por si só já vai contra os princípios de preservação histórica do cinema. Estúdio nenhum merece ter esse poder.


Se a ideia por trás da remoção da nudez de Hannah é fazer com que o filme não sofra represálias por grupos religiosos fundamentalistas - que enlouquecem com qualquer insinuação minimamente sexual - vale lembrar que o filme quando foi lançado nos anos 1980, ele foi vendido como uma comédia romântica adulta. É para isso que existe um sistema de classificação indicativa. A responsabilidade de ver o filme na íntegra cabe ao espectador responsável.


Mas se esse continua a ser um problema, existe uma segunda solução: lançar as duas versões do filme na plataforma: uma com a nudez, e uma sem. Problema resolvido.


Vale mencionar também o duplo padrão em vigência nesse mesmo estúdio. Lembrando: a Disney é dona da Marvel, que lançou um certo filme chamado Thor Ragnarok há menos de 3 anos, e que contém uma cena com o Hulk nu. Por que um monstrengo verde e masculino pode andar nu e não sofrer qualquer censura? Aí entra o duplo padrão e o machismo em Hollywood a respeito da nudez masculina vs. nudez feminina.


E alguém consultou Hannah na véspera de relançar seu filme? Provavelmente não. Dá para se imaginar que ao menos a dona do corpo exibido nas telonas teria mais direito a opinar quanto a isso. Mas o departamento de marketing é sempre a voz principal nessas questões.


E com a capacidade que existe hoje em gerar soluções via computação gráfica (vide a pós-produção que teve na adaptação de Cats após o lançamento do filme), o que impede estúdios de reescreverem sua história, mexendo em seu acervo? Isso cria um precedente perigoso, e deixa o público no risco de perder esse aspecto histórico do cinema.


Lembrando que isso não invalida a ideia de edições especiais de filmes. Nada mais justo que um diretor queira reeditar um filme e lançar uma versão especial, desde que se tenha ambas as versões disponíveis. E nesse caso, o autor tem o direito de mexer em sua obra caso queira. Mas um estúdio fazer isso de forma unilateral - e por uma questão tão mesquinha quando as nádegas que aparecem por meio segundo de filme - mostra o risco que é um estúdio ter esse poder, e a dificuldade que é para historiadores e curadores manterem vivos a memória e a história da sétima arte.



Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:46  

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